João Mello
Neto - Instituto Tancredo Neves de
Pesquisa Sócio Econômicas.
Há mais de cinqüenta anos, mais precisamente no dia 4
de junho de 1947, foi lançado o Plano Marshall para a reconstrução da Europa no
pós-guerra. Com um investimento de US$13 bilhões, os EUA lograram reerguer das
cinzas toda a economia do continente no prazo de apenas cinco anos. O sucesso do
plano levou a maioria dos economistas da época a acreditar que desenvolvimento
se criava simplesmente com disponibilidade de capitais.
Em agosto de
1961, o novo presidente dos EUA, John Kennedy, tentou reprisar a fórmula,
criando a Aliança para o Progresso, com o objetivo de desenvolver a América
Latina. Os EUA, desta vez, bancaram o plano com US$20 bilhões. Dez anos depois,
constatou-se que todos os recursos haviam escoado pelo ralo.
A história
haveria de lhes proporcionar uma nova oportunidade. Na década de 70, nada menos
do que US$700 bilhões foram extraídos das nações ricas, pelos árabes, e
investidos ou emprestados para o chamado Terceiro Mundo. Na década de 80, o
balanço da época mostrou os seguintes resultados:
Os povos árabes
continuavam a viver na Idade Média e a economia dos países pobres passou de
incipiente para inadimplente.
Os economistas, então, reformularam as suas
teses. As nações não se desenvolviam em razão apenas do Capital Físico. Havia
também o "Capital humano" - e a química perfeita só se daria quando ambos se
combinassem. O Japão e os "Tigres Asiáticos", com seus altos índices
educacionais, ali estavam para corroborar a nova teoria.
Era nova, mas só
durou dez anos. O fim da União Soviética, já no início dos anos 90, presenteou o
Ocidente com diversas nações, no Leste Europeu, cujos povos possuíam um nível
educacional ainda maior do que o dos asiáticos.
Todos os grandes
investidores correram para essa nova fronteira. O fiasco foi quase total. Se o
capital físico não bastava e o capital humano também não, qual seria, então, o
fator desencadeador do progresso das nações?
A história da Itália, nos
últimos 30 anos, nos fornece uma pista valiosa. Vale a pena
recontá-la.
Os italianos, por natureza, sempre foram ingovernáveis. Desde
o século passado, quando se deu a unificação, eles viviam brigando entre si. O
Norte, desenvolvido, se queixava do Sul, cada vez mais atrasado. O Sul, por sua
vez, culpava o Norte, "imperialista", por não ter podido desenvolver-se. Em
1968, o Parlamento optou por uma solução salomônica: descentralizar o governo,
criar conselhos regionais e deixar que cada uma das 20 províncias cuidasse de
si. Já em 1970 foram eleitos os primeiros governos regionais.
A
experiência de imediato despertou interesse. Afinal, tratava-se de uma
oportunidade inédita de verificar, na pratica, como evoluiriam as províncias
que, pelos seus contrastes, se constituíam em uma amostragem quase perfeita do
Primeiro e do Terceiro Mundo. Uma equipe, coordenada pelo professor Robert
Putnan, de Havard, foi designado para observar "in loco" o desenrolar do
processo. As conclusões, após 20 anos de acompanhamento, foram no mínimo
surpreendentes. Vejamos:
A distribuição das verbas se deu de forma a
tratar igualmente a todas as províncias, segundo o número de habitantes. Aos
Conselhos Regionais foi outorgada plena autonomia para legislar e executar
programas voltados à habitação, saúde, educação, agricultura e tudo o mais que
fosse essencial.
Resultado: as províncias nortistas - Lombardia (Milão),
Piemonte (Turim), Liguria (Genova), Toscana (Florença), Emilia Romagna (Parma e
Bolonha), antes acusadas de "imperialistas", simplesmente dispararam tão logo
"deixaram de sê-lo". Já as províncias do Sul - Puglia, Basilicata Calabria,
Sicilia, etc. - que sempre se queixaram de discriminação por parte do governo
central, tão logo se viam "livres de seus grilhões", deram um enorme passo para
trás...
Levando em conta que todas se tornaram autônomas em igualdade de
condições, por que razão as diferenças regionais se acentuaram ainda mais? Os
pesquisadores não hesitam em apontar a causa "capital social" ou, em uma
tradução mais livre, "Capital Cívico". Do que se trata, afinal?
Capital
Cívico é, basicamente, o patrimônio de instituições e relações interpessoais que
uma sociedade possui, o qual possibilita a cooperação mútua, a confiança
recíproca e a ação coletiva. Quanto maior é esse patrimônio, mais eficiente é a
sociedade na consecução de seus objetivos. O papel do Estado, como guardião das
normas de conduta e garantidor dos contratos estabelecidos, é substancialmente
reduzido, uma vez que é a própria sociedade que o assume, relegando, ao
ostracismo os eventuais oportunistas que nela se apresentam.
Não há nada
de utópico nesse sistema. Todos têm consciência de que cada um sempre agirá de
acordo com os próprios interesses.
Quando Fulano confia em Sicrano, não o
faz por credulidade, mas sim porque tem certeza de que, diante das previsíveis
conseqüências, Sicrano, em qualquer circunstância, sempre optará por cumprir
fielmente o combinado. Não havendo ônus da fiscalização permanente, as
transações e associações se tornam mais ágeis e abrangentes, contribuindo assim
para otimizar o desempenho e sustentar a prosperidade. Capital Cívico é algo
que se multiplica ao longo do tempo.
Pois bem. Por ocasião da unificação
nacional, em 1860, a Itália do sul era mais rica e industrializada do que a
Itália do norte. Em compensação essa última, fragmentada em cidades-estados
desde a Idade Média, possuía uma herança cívica incomparavelmente maior do que a
primeira - que até então vivia num regime semifeudal.
Uma vez constituída
a Nação, a posição da gangorra haveria de inevitavelmente se inverter. Como
era a sociedade no Sul?
Vivia há séculos sob o despotismo, a dissimulação
e a desconfiança mútua que, mais do que costumes, criam regras de sobrevivência.
Oportunismo era tido como virtude e enriquecimento ilícito era sinônimo de
habilidade. Quando Giovanni fraudava Giuseppe, o primeiro era incensado como
esperto, cabendo ao segundo a pecha de otário. Sonegar impostos, mais do que um
hábito, consistia, na verdade, em uma obrigação. "Quem age direito morre
miserável", rezava um famoso ditado calabrês.
Se no Norte o Estado era
desnecessário, no Sul ele era inexistente.
Para garantir o cumprimento
dos contratos, só mesmo recorrendo aos favores da Máfia. E é exatamente por
cumprir esse papel que ela se manteve vigorosa ao longo do tempo. Quando se
instalaram os governos provinciais, não era difícil prever que eles seriam um
instrumento de clientelismo. Todos sabiam ser tudo aquilo abominável, mas
inserir-se no sistema era a única opção para a sobrevivência.
Por esse
enfoque, é fácil entender por que o Plano Marshall foi um sucesso e a Aliança
para o Progresso não. É possível, também, decifrar a charada do Leste Europeu.
Por mais capital humano que ali houvesse, 70 anos de domínio soviético
destruíram todo o patrimônio cívico que lá existira...
Essa é a História
e cumpre-me apenas narrá-la. Reflexões, comparações - isso deixo a cargo de quem
vier a ler este artigo. |